top of page

A lógica (perversa) do identitarismo



A identidade se torna uma armadilha quando se converte em uma política, ou mais precisamente, em "política de identidade" ou "identitarismo" - é o que diz Asad Haider no livro "Armadilha da Identidade" (2019).

Mas por que a "identidade" se converteu em "identitarismo"? - eis a questão.


A dificuldade de Haider é entender a "política de identidade" como sendo uma política (ou geopolítica) do capital - ou do imperialismo estadunidense. Noutros termos, é uma estratégia de manipulação do capital, entendendo-se por “capital”, o poder político hegemônico do imperialismo dos EUA-OTAN. Trata-se de uma situação concreta: o discurso "identitarista" tem tempo-e-espaço histórico. Quais os agentes políticos e sociais que disseminam a ideologia identitarista? Isto é historicamente concreto.


Ao mesmo tempo, falta a Haider uma teoria crítica do capitalismo manipulatório - numa perspectiva histórico-materialista. Na medida em que se exacerbam desde a década de 1970, as contradições internas do modo capitalista de produção - inclusive enquanto crise/reordenamento da hegemonia global do imperialismo estadunidense - o poder da Ideologia opera enquanto poder de manipulação.


István Mészáros no seu livro "O poder da Ideologia" observou que "o processo da prática de confundir caracteriza o capital enquanto força controladora do intercâmbio e da reprodução social" (p. 295). A ideologia enquanto manipulação é isso - oculta, dissimula, confunde e diversiona (o “diversionismo” é o estratagema midiático que consiste em desviar a atenção das pessoas para assuntos irrelevantes ou pouco importantes).


Uma teoria da manipulação na era da crise estrutural do capital é tão necessária quanto a teoria do imperialismo para entendermos nosso tempo histórico. É uma lacuna teórico-metodológica nada desprezível, não reconhecer a "política de identidade" como sendo uma arma de manipulação. Afinal, se confunde “identidade” com “identitarismo”.


Avançando o entendimento, diremos: o identitarismo é uma arma de "guerra híbrida" ou ainda, uma expressão do poder da ideologia enquanto manipulação do capital. Ao dizermos "guerra híbrida", colocamos metodologicamente no horizonte a problemática geopolítica do imperialismo. Aliás, o conceito de "imperialismo" é um conceito maldito nas ciências sociais de hoje (inclusive no campo marxista!) - tanto quanto o conceito de capitalismo ou capital. Discutimos isso no post "Imperialismo: Um conceito fundamental (e inconveniente)".


Outra questão: o "identitarismo" é uma estratégia ideológica de "dessubjetivação de classe" ou um ardil do "desmonte" da consciência de classe.


Por que o identitarismo desconstrói a classe trabalhadora?


Do mesmo modo que o individualismo é a perversão da individualidade, o identitarismo é a perversão das identidades de classe.


A categoria de Identidade é a categoria fundamental (e fundante) das individualidades sociais. Os indivíduos que compõem a classe social do trabalho tem sexo, raça, idade, credo religioso...mas os atributos específicos de identidade ou os traços particulares das individualidades da classe não podem se tornar referentes ontológicos do sujeito. Isto seria "subverter" a categoria de classe enquanto identidade política; ou produzir aquilo que denominamos a "subjetividade às avessas". Isto é um movimento político-ideológico (da luta de classes), uma estratégia de manipulação que confunde, distorce e diversiona a consciência social. No fundo, isto é uma forma de "captura" da subjetividade - que analisei (em 1997) como nexo essencial do toyotismo sistêmico.


A manipulação (ou o "espírito do toyotismo") ocorre por meio de valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado. Assim, a era do capitalismo manipulatório é a era da "subjetividade às avessas" e do "inconsciente estendido". Isto discuti no meu livro (de 2011) - "Trabalho e Subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório" (Boitempo, 2011).


Tenho elaborado teoricamente os vários aspectos da morfologia do capitalismo manipulatório - isto é, as novas formas da alienação e autoalienação do sujeito toyotizado: "Dimensões da precarização do trabalho" (Praxis, 2013), "Trabalho e neodesenvolvimentismo" (Praxis, 2014), "A tragédia de Prometeu" (Praxis, 2016).

Na verdade, a sociedade neoliberal produz o "carecimento de identidade". Na medida em que se aprofundam a alienação e autoalienação das pessoas, e tendo em vista a crise do salariato, da sociabilidade e das organizações defensivas do trabalho (sindicatos e partidos) por conta da ofensiva neoliberal, constitui-se uma sociedade de pessoas (de classe, assalariadas) desamparadas e frustradas.


Ao mesmo tempo, o sistema do capital é uma "máquina" de produzir "identidades" que reforçam em si e para si, o particularismo - isto é são identidades funcionais à reprodução da ordem neoliberal. Embora as identidades sejam legitimas - como, por exemplo, a luta contra a opressão das mulheres e dos negros, por exemplo - tais lutas pessoais (e sociais) são incorporadas de forma particularista, muitas vezes ocultando e obstaculizando o horizonte da classe do trabalho enquanto sujeito histórico-político capaz de negar o capital.


A luta fundamental nosso tempo histórico é a luta contra a exploração da força de trabalho, lutas de redistribuição da riqueza social e pela construção de uma nova sociedade para além do capital, e não apenas de lutas de reconhecimento social no interior da ordem perversa do capital


Uma questão final:


Como o poder da ideologia enquanto manipulação se materializa tecnologicamente?


O Facebook é o modelo de rede social na era do identitarismo. Por exemplo, se você nunca curte o que eu público, você logo deixará de fazer parte da minha bolha no facebook. Eu não vou ver mais o que você publica (e vice-versa). O algoritmo decidiu assim. O Facebook é o mundo das bolhas (ou identidades). No mundo do identitarismo, o mundo é um mundo de "bolhas identitárias". Assim, eu só vou ver (ou ”identificar-se”) com o ”fragmento” da qual faço parte. Enfim, a meta é criar um mundo de fragmentos habitados por fragmentos de "personalidades" (fakes).

Esta é a forma suprema da dominação do capital. É simplesmente uma arma de guerra híbrida do Ocidente neoliberal contra a humanidade proletária. Mais do que nunca, precisamos teorizar as formas de manipulação!

Comments


bottom of page