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O Que é o Capital



O conceito de “capital” é um dos mais complexos conceitos das ciências históricas. O conceito de capital é tão (ou mais) fundamental para a consciência crítica do que o conceito de “trabalho”. Mas faz-se - na academia - pouca reflexão sobre tal conceito para além do economicismo de plantão. O que sempre tenho elaborado é uma sociologia crítica do capital e não propriamente uma sociologia do trabalho como convencionalmente se faz. Ao mesmo tempo, o conceito de “capital” na perspectiva crítica, histórico-materialista e dialética, não deixa de ser um conceito "maldito" e de certo modo, inconveniente.


Karl Marx intitulou sua obra-prima “O Capital: Crítica da Economia Política”. Nesse caso, “capital” significa valor em movimento, o “valor econômico” que representa a riqueza abstrata originária da extração do mais-valor (absoluto e relativo). Isto é, o capital origina-se da exploração da força de trabalho. Na verdade, capital e trabalho são “gêmeos siameses”, isto é, irmãos que compartilham uma parte do corpo, logo, nascem e vivem ligados um ao outro.


Está interessante figura metafórica se expressou, por exemplo, nesta passagem do livro “Trabalho e capital monopolista” (1975) de Harry Braverman, onde ele nos diz:


Trabalho e capital são os pólos opostos da sociedade capitalista. Esta polaridade [...] como uma dualidade de classes [...] domina a estrutura social [e está] encarnada [em inglês: incorporated] em uma identidade necessária entre as duas. Seja qual for a sua forma, como dinheiro ou mercadorias ou meios de produção, o capital é trabalho: é trabalho que foi realizado no passado, o produto concretizado de fases precedentes do ciclo de produção que só se torna capital mediante apropriação pelo capitalista e seu emprego na associação de mais capital. Ao mesmo tempo, como trabalho vivo que é comprado pelo capitalista para acionar o processo de produção, o trabalho é capital. Aquela parcela de capital ansiosa separada para pagamento do trabalho, a parcela que em cada ciclo é transformada em força de trabalho vivo, é a parcela de capital que representa a população trabalhadora e a ela corresponde, e sobre a qual subsiste.”


Braverman vai além – diz-nos que “a classe trabalhadora é a parte animada do capital, a parte que acionará o processo que faz brotar do capital total seu aumento de valor excedente. Nessa condição, a classe trabalhadora é antes de tudo, matéria-prima para exploração”


Esta passagem de Braverman é forte (e densa).


Para Marx, fazer a crítica do capital é também fazer a crítica do trabalho assalariado e inclusive da classe trabalhadora enquanto fundamento da riqueza capitalista (a exploração); e a crítica da distribuição da mais-valia social entre os rendimentos do trabalho (salário), capital (lucro) e proprietários fundiários (renda da terra).


A obra seminal de Marx – nos volumes 1, 2 e 3 (de "O Capital") - desvelou os fundamentos do capital, sua gênese e desenvolvimento; os circuitos da produção e circulação global do capital; e o movimento contraditório dos múltiplos capitais, da concorrência entre eles; do aumento da produtividade do trabalho e do aumento da composição orgânica do capital e, por conseguinte, da queda da taxa de lucro e da tendencia de crise do sistema – tendencia e contratendências.


Portanto, o conceito de capital em Marx diz respeito essencialmente à crítica da economia política ou a crítica do capitalismo enquanto modo de produção histórico e social. Esta é a concepção exposta na critica da economia politica a partir do qual tem sido feita a critica do capitalismo enquanto modo de produção social.


Por outro lado, existe outra concepção de "capital" enquanto metabolismo social estranhado que diz respeito à problemática da reprodução social, ideologia e estranhamento, tendo como base a exposição – por exemplo - do Para uma Ontologia do Ser Social (de Georg Lukács).


A dimensão sociometabolica ou a dimensão do controle social, é condicionada pelo modo de produção da vida material da qual se ocupa a crítica da economia política.


Não se faz a crítica do capital enquanto metabolismo social estranhado - na perspectiva materialista – sem dominar a crítica da economia política.


Enquanto filósofo, István Mészáros, ex-aluno de Georg Lukács, tomou para si a tarefa de fazer a crítica do capital numa perspectiva ontológica – isto é, no sentido do metabolismo social.


A perspectiva ontológica da crítica do capital implica em refletir os fundamentos do ser social (o trabalho) e a reprodução social, ideologia e estranhamento, mas – e isso é importante – sob as condições do controle social estranhado do capital que adquiriu no capitalismo, a sua forma historicamente superior.


Toda reflexão ontológica lukacsiana foi elaborada como pressuposto fundamental para o verdadeiro objetivo: a elaboração de uma ética marxista (materialista, histórica e dialética).


Ao discutir a ética, Lukács se manteve fiel à sua obsessão intelectual-moral: o problema da práxis e da história (desde, pelo menos, “História e Consciência de Classe” em 1923 – nas condições da problemática da reificação, fetichismo e manipulação das individualidades humanas.


A ética marxista diz respeito à reflexão sobre a práxis histórica e à reflexão sobre as condições da revolução social tão necessária na medida em que o capitalismo como modo de produção e reprodução social estranhado vive sua decadência histórica, ameaçando a existência da própria humanidade.


Ao colocar a necessidade de uma ética marxista à altura do nosso tempo histórico, Lukács não foi um mero filosofo, mas um homem de ação politica preocupado com a tarefa e responsabilidade moral dos intelectuais.


Tal como Marx, Lukács faleceu (em 1971), deixando inacabada sua obra-prima (a Ética).


O conceito de capital em István Mészáros é diferente do de Marx.


É claro que a crítica de Mészáros do capitalismo é uma crítica marxista, isto é, parte de Marx. A critica da economia politica está presente nas reflexões do filósofo húngaro. Mas a critica do capital em Mészáros é bastante original porque ele distingue “capital” e “capitalismo”. Isto é, pode-se abolir o capitalismo sem abolir o capital – esta foi a experiência da luta pelo socialismo no século XX.


A URSS foi uma sociedade pós-capitalista, mas foi incapaz de abolir o capital. Por isso, o capitalismo foi restaurado com vigor na Federação Russa e nos países do Leste Europeu. Para que a abolição do capital ocorresse seria necessário a construção de um novo metabolismo social sob controle consciente e planejado de “homens livremente socializados” – como afirmou Marx. Mas, embora os homens façam sua própria história, “eles não a fazem como querem; não a fazem sob circunstancias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (Marx).


Portanto, na concepção de Mészáros, o capital não é apenas um conceito da crítica da economia política, mas diríamos nós - um conceito do metabolismo social que nos impõe a discussão da problemática do práxis, do estranhamento e da reificação/fetichismo; a problemática da subjetividade sob o poder da ideologia e da manipulação; e inclusive, a problemática da ecologia (a relação do homem com a natureza) e da saúde humana – temas fundamentais do nosso tempo histórico.


As discussões sobre o metabolismo social estranhado tornaram-se necessárias e urgentes!


Ir para além do capital significa ir para além do estranhamento – não apenas do trabalho estranhado, mas da vida estranhada (política, consumo e tempo livre).


Ir além do capital significa construir - por meio da política-para-além-do-Leviatã ou da política-que-faz-a-crítica-do-Estado (estranhado), um novo modo de controle do metabolismo social ou uma nova práxis.


A discussão do Estado (para além do capital) é necessária e fundamental hoje!


Nesse caso, a emancipação social deve visar não apenas ir além do capitalismo (modo de produção) ou do mercado capitalista; mas ir além do capital ou modo estranhado de controle social.


A idéia de controle social é fundamental para a crítica do capital. Na sua prática de manipulação social, o capital destroi cotidianamente, as possibilidades da formação de homens com capacidade (subjetiva) para o controle social consciente e planejado.


Esta é a questão: como emancipar a sociedade sem homens livremente socializados, fragmentos de individualidades humanas, monstruosidades reduzidas à afetos estranhados ?


É isto que representa a barbárie social, isto é, a obstrução das possibilidades subjetivas necessárias para a emancipação dos humanos do controle social estranhado do capital.


Ao elaborar o “Para Além do Capital”, Mészáros se reencontrou com o velho Lukács que, nos últimos anos de vida (última metade da década de 1960), se dedicou não apenas a escrever “Para uma Ontologia do Ser Social” (como fundamento de uma Ética marxista), mas a fazer nas suas entrevistas, a crítica do capitalismo manipulatório e a escrever sobre a democratização da vida cotidiana.


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