Tenho analisado há mais de 20 anos o filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin. Cada vez que assisto o filme clássico de Chaplin percebo detalhes que expõem a riqueza crítica inscrita na composição do filme. Talvez Chaplin não tenha percebido, mas a primeira parte do filme - que analisamos aqui - expõe uma dialética do trabalho estranhado. Isto é genial: Chaplin nos diz que a loucura do trabalho é a loucura do capital. Para fazer a critica da loucura do trabalho é preciso criticar a loucura do capital (o que demonstra as limites de uma "sociologia do trabalho" que não faz a crítica da economia política).
Por capital devemos entender não apenas a empresa capitalista que explora o trabalho vivo, mas também o Estado politico que espolia o sujeito que trabalha. Mas o capital é também o próprio trabalho assalariado – o meio de vida e meio de subsistência do trabalho vivo que tornar-se meio de morte – ou como vemos no filme, adoecimento físico mental. Quando a vida se reduz a trabalho, o trabalho do capital consome as energias vitais do trabalho vivo.
Os primeiros 20 minutos do filme contém em si, elementos interessantes para aprendermos a dialética do trabalho estranhado.
Vejamos a lógica do filme, o modo como Charles Chaplin expõe a produção da loucura do trabalho enquanto – verdadeiramente – loucura do capital movido pela extração de mais-valor.
Esta primeira parte do filme - os 20 minutos iniciais - Chaplin trata do personagem Carlitos na Fábrica. Ela pode ser dividida em 4 momentos que expõem o movimento da dialética do trabalho estranhado e seus impactos na subjetividade do personagem (ou anti-herói) trágico: Carlitos (The tramp).
Momento 1: A Tese – isto é, o Trabalho Estranhado
A abertura com o relógio, a representação da ditadura do Tempo ou a ditadura do sujeito-capital que suga tempo de vida do trabalho vivo. “Time is Money”!
Logo a seguir, o operário-massa que entra na Grande Fábrica é representado por um rebanho e entre o rebanho existe uma “ovelha negra”. Enfim, é possível rebelar-se indivisual ou coletivamente contra a servidão do sujeito-capital. Esta é a mensagem de Chaplin !
Chaplin nos mostra a Grande Indústria fordista-taylorista, onde os operários são apêndices da máquina: a linha de produção acoplada a uma esteira mecânica que dita o ritmo do trabalho. Ele passa o dia executando um trabalho repetitivo e monótono, sem conteúdo e ele sofre por isso, manifestando os primeiros sinais do estranhamento.
O trabalho estranhado é o trabalho submetido à obsessão do capital: o capitalista vigia o espaço da produção com telas.
Chaplin foi visionário pois é o que ocorre hoje com o capitalismo de vigilância.
A obsessão do capitalista, mera persona do capital, é aumentar a produtividade do trabalho visando extrair a mais-valia relativa – primeiro, vimos que ele aumenta a velocidade da linha de produção. Trabalho esvaziado de sentido, Mais trabalho, trabalho veloz - é a norma.
Neste momento, Carlitos começa apresentar os primeiros sinais de inquietação e inadaptação ao ritmo de trabalho. O estranhamento se manifesta em sintomas do corpo. Sente-se ameaçado inclusive por uma mosca que circula na linha de produção.
Carlitos busca um espaço de recomposição de sua subjetividade autoalienada. Encontra no banheiro o local para se recompor – como fazem muitos trabalhadores e trabalhadoras. Mas lá também o capitalista controla ...pela tela.
O trabalho estranhado pressiona e acua o sujeito que trabalha, reduzindo seus espaços de recomposição subjetiva. Inclusive, hoje, por exemplo, com as novas tecnologias informacionais e o smarthphone, o capital as utiliza para reduzir tempo de vida a tempo de trabalho.
O capital produz a “vida reduzida”, ocasionando ansiedades, depressão e síndrome do pânico.
O capitalista se dedica diariamente a controlar e promover inovações tecnológico-organizacionais, propiciando a sucção de energia vital da força de trabalho. É a obsessão do capital: sugar mais-valor que é – no fundo – menos vida ou menos energia vital, fisico-espiritual - para o sujeito que trabalha.
Vemos neste momento que aumentar a velocidade da linha de produção, ou o aumento da carga de trabalho. não é suficiente para o capitalista.
O capitalista pressionado pela concorrência com outros capitalistas, busca reduzir os tempos mortos na produção. Ele experimenta uma máquina alimentadora que visa reduzir o tempo que o operário gasta no intervalo para o almoço. Mas nem sempre a tecnologia capitalista funciona: a máquina alimentadora é um tremendo fracasso.
Neste momento 1 do filme, Chaplin nos diz: trabalho estranhado é o trabalho subsumido à loucura do capital, a loucura da mais-valia.
Aonde dizemos capitalista podemos dizer burocrata, outra persona do capital, que opera a máquina de sucção de energia vital das pessoas que trabalham.
Capitalistas e burocratas das repartições públicas, são personas do capital, operando o trabalho estranhado com sua divisão hierárquica do trabalho (os poucos que mandam e os muitos que obedecem - como rebanhos).
Momento 2: A antítese, o mais-trabalho
Enquanto o momento 1 – a Tese (que dura cerca de 13 minutos) – representa a loucura do capital, isto é, a loucura da mais-valia relativa, o momento 2 que vem logo a seguir (durando pouco mais de 1 minuto) é a Antítese, intitulada a Loucura do Trabalho que é produto do mais-trabalho decorrente da obsessão do capital em exacerbar a exploração da pessoa que trabalha.
Neste momento, Carlitos surta pois o capitalista aumenta mais ainda, a velocidade da linha de produção.
O que Chaplin nos diz é que o trabalho vivo tem limites que dizem respeito à sua corporalidade viva, mente e corpo, face às pressões e à loucura do sujeito-capital.
Carlitos reage, enlouquecendo.
É a resistência passiva do anti-herói trágico, resistência contingente, solitária, que se manifesta de forma diruptiva no momento 3 desta primeira parte do filme.
Momento 3: A síntese: A loucura do trabalho e a desrazão da modernidade-máquina
Neste momento 3 intitulado Síntese – a loucura do trabalho vivo, temos o cume do processo iniciado no Momento 1. Face ao trabalho e mais-trabalho, resta ao sujeito que trabalha, enlouquecer. É o que Chaplin nos apresenta de forma magistral. Esta foi a primeira denúncia fílmica da loucura do trabalho no cinema mundial (em 1936!).
O operário adoecido desorganiza a ´produção do capital.
A loucura do trabalho vivo é a resposta à loucura do sujeito-capital.
“Não sois máquina !” – disse Charles Chaplin noutro filme grandioso: “O Grande Ditador”.
Face à estupidez do sujeito-capital, o sistema do Lucro e do Poder, como não somos máquinas, enlouquecemos.
A loucura do trabalho é a manifestação da humanidade do trabalho vivo, incapaz de adaptar-se à desrazão do capital. Nem todos conseguem se adaptar na medida certa – e adoecem - uns mais e outros menos. Ninguém passa incólume pela desrazão do capital.
Neste momento 3, Carlitos torna-se um bailarino louco que vê o mundo que lhe cerca composto por humanos-parafusos que ele busca aperta-los para faze-los funcionar. Ele torna-se o “louco da Ordem”, que – com a sua insanidade – desorganiza a produção.
Carlitos transgride a normalidade, sendo loucamente um executor dela. Por exemplo, ele persegue a secretária da fábrica, obcecado que está em apertar mamilos dos seios como se fossem parafusos. Na verdade, ele diz: "sois partes da engrenagem que me enlouqueceu! Cada de vós é um parafuso da Grande Engrenagem da Burocracia do Capital".
É a pulsão libidinal - pulsão de vida - invertida pelos requerimentos da modernidade-máquina.
Adoecido mentalmente, Carlitos foi internado no hospital psiquiátrico.
E por fim, podemos apreender outra síntese possível – um momento 4 - para além da Loucura do Trabalho. Depois de enlouquecer e ser internado, Carlito se “recupera” e saí do hospital psiquiátrico. Ele volta para o mundo normal do capital (a loucura do capital é a loucura do Normal).
O Carlito “recuperado” se depara novamente com o mundo do trabalho estranhado.
O fábrica o enlouqueceu, mas recuperado, ele volta à loucura da vida estranhada. Ninguém escapa do sociometabolismo do capital. Não é só o trabalho que é desumano, mas a vida social é desumanizadora. É isto que Chaplin quer nos dizer.
Momento 4: A síntese2: A Política da Luta de Classes
Neste Momento 4, temos a outra Síntese possível (a verdadeira “negação da negação” - para além da falsa Síntese, que é o enlouquecimento).
De repente, Carlitos se depara com a contingencia da política!
Nesse momento ele se encontra – inadvertidamente e por acaso – com o movimento politico de luta de classe nas ruas da cidade.
Chaplin nos diz: o trabalho vivo reage não só enlouquecendo, mas protestando coletivamente – isto é o principio da modernidade do capital.
Diferentemente do principio da modernidade - que é a politica da luta de classe - o principio da pós-modernidade é o principio da fragmentação identitária que destruiu a perspectiva de classe e movimento coletivo.
Neste momento 4 é como se Chaplin dissesse: a verdadeira saída é a luta de classe.
Mas Carlitos como é o anti-herói trágico, ele sofre a perseguição policial, sendo preso como agitador comunista. Enfim, tragicamente ele volta para outra instituição disciplinar do capital – não mais o hospital psiquiátrico, mas o presidio.
Chaplin nos diz: como não lutamos coletivamente, como recusamos o princpio da luta de classe, estamos condenados a enlouquecer...
Esta é a verdade do capitalismo neoliberal e da loucura do sujeito-capital no século XXI.
Para ver o filme completo, clique aqui.
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